quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Conflitos na e pela cidade: contribuições para o ensino de geografia

Professor no Instituto Federal do Espírito Santo

O presente texto se propõe a tratar dos aspectos gerais da urbanização contemporânea no Brasil, destacando os conflitos que emergem na produção e apropriação do espaço urbano. A cidade é um produto histórico e social e, por isso, revela em cada momento histórico as tensões e os conflitos presentes no interior da sociedade.


São os diversos modos de apropriação do espaço que vão pressupor as diferenciações de uso do solo e a competição que será criada pelos usos, e no interior do mesmo uso. Como os interesses e as necessidades dos indivíduos são contraditórios, a ocupação do espaço não se fará sem contradição e, portanto sem luta. (Carlos, 2001, p.42).

O geógrafo Roberto Lobato Correa (1989) afirma que a produção do espaço urbano se realiza a partir das ações dos seguintes agentes (ou atores) sociais: 1) os proprietários dos meios de produção, sobretudo as grandes empresas; 2) os proprietários fundiários; 3) os promotores imobiliários; 4) o Estado; 5) os grupos sociais excluídos. Entendemos que esse último agente se configura a partir de movimentos espontâneos ou organizados na luta por moradia, transporte urbano, trabalho, lazer, etc. Cada um desses agentes, ou grupos sociais, se apropria do espaço urbano a partir de seus interesses, que ora podem ser convergentes, ora divergentes em relação a outros agentes sociais. 

As empresas atuam sobre a cidade com intuito principal de obterem ganhos privados (lucros). Nesse sentido, a orientação de suas ações tem como parâmetro a busca de menores custos possíveis para sua atividade econômica. As estratégias para atingirem esses objetivos podem variar entre empresas e entre diferentes ramos de atividades. Mas, de um modo geral, podemos afirmar que as empresas industriais ou comerciais buscam terrenos, de diferentes tamanhos, e baratos, com infraestrutura urbana que seja condizente com suas atividades.

Os proprietários fundiários são, digamos assim, os “donos” da cidade. A terra urbana é uma condição básica para qualquer atividade econômica ou construção de infraestrutura no espaço urbano. Tendo consciência desse fato, os proprietários fundiários buscam obter os maiores ganhos possíveis (renda da terra) a partir da valorização de suas terras. Para tanto, lançam mão de estratégias como a especulação fundiária (retenção de áreas vazias no interior da mancha urbana), pressão sobre o poder público construir infraestrutura como vias rodoviárias ou equipamentos públicos nas proximidades de seus terrenos, etc. 

Os promotores imobiliários produzem uma parcela considerável da cidade. Aqui estamos falando dos incorporadores e loteadores. Ambos buscam obter ganhos através da venda do produto imobiliário, que pode ser uma casa, um apartamento ou um lote. Os ganhos dos promotores imobiliários estão relacionados diretamente ao preço final de venda do produto imobiliário. Por isso, lançam estratégias como empreendimentos em áreas com infraestrutura urbana, próximas de amenidades naturais (praias, área verde) ou produzem habitações com inovações como os condomínios fechados munidos de área de lazer interna e outros serviços. Em função de tais estratégias, o mercado imobiliário é caracteristicamente excludente, não sendo acessível para parcela significativa da população de países como o Brasil.


O Estado é, sem dúvida, um agente social privilegiado na produção do espaço urbano. Sua atuação é complexa e variável ao longo do tempo e do espaço, refletindo as contradições e as correlações de força no interior da sociedade, uma vez que o Estado não é neutro. A atuação do poder público sobre o espaço urbano é dupla. De um lado, regulamenta o uso e a ocupação do solo urbano pelos agentes privados através da legislação, além de mediar as tensões e os conflitos que tem a cidade como palco e objeto. De outro, o poder público produz o espaço diretamente por meio da construção de vias, equipamentos públicos, habitações populares, etc. A forma como o Estado atua sobre a cidade (o que se construir e onde, por exemplo) reflete diretamente na orientação das ações dos outros agentes privados.

Os grupos sociais excluídos representam a parcela da sociedade que ao longo do processo de produção da cidade, seja pelos agentes privados, seja pelo Estado, tem uma série de direitos negados: moradia, transporte público, lazer, trabalho, cultura etc. Nesse contexto, esses movimentos espontâneos ou organizados lutam por uma cidade menos desigual e mais justa. Uma das expressões concretas da ação dos grupos sociais excluídos são as ocupações e favelas, produzidas pela população com menos rendimentos e subempregados que não têm como pagar aluguel ou comprar imóveis no mercado imobiliário formal. Nessa lógica de luta por direitos, podemos acrescentar protestos ligados a melhorias ou mudanças no transporte público, desde os realizados em bairros populares às recentes manifestações dos estudantes ligados ao movimento Passe Livre. Outros reivindicam o direito ao trabalho nas cidades como é o caso dos ambulantes e guardadores de carros (flanelinhas). De um modo geral, os grupos sociais excluídos entram em confronto direto com o poder público, como assistimos na TV quase que diariamente.

Portanto, a identificação desses agentes sociais que produzem o espaço urbano mostra-se como uma possibilidade de entendermos melhor os conflitos urbanos, e o que, de fato, está em jogo. O Observatório dos Conflitos Urbanos (UFRJ/IPPUR/CMRJ) define conflito urbano: 

(...) todo e qualquer confronto ou litígio relativo à infraestrutura, serviços ou condições de vida urbanas, que envolva pelo menos dois atores coletivos e/ou institucionais (inclusive o Estado) e se manifeste no espaço público (vias públicas, meios de comunicação de massa, justiça, representações frente a órgãos públicos, etc). Manifestação coletiva que tenha a cidade como espaço e objeto de suas reivindicações. (Observatório dos Conflitos Urbanos)
Para aprofundarmos um pouco mais as questões, é preciso, ainda que resumidamente, entender um pouco mais da natureza do processo de urbanização atual, em especial no Brasil. A consolidação da industrialização a partir das décadas de 1960 e 1970 foi, sem dúvida, um marco para a urbanização brasileira. Esse processo social e econômico promoveu a integração do território e a formação de uma rede urbana nacional hierárquica, tendo como epicentro as grandes metrópoles. A população brasileira se urbanizou, hoje mais de 80% dos brasileiros vivem nas cidades, sobretudo nas grandes cidades e metrópoles.

A rede urbana e as cidades passam ser organizadas segundo os interesses da produção industrial, em seus vários momentos como a circulação e o consumo. Ao mesmo tempo, importante parcela da população que chegava aos centros urbanos não conseguia empregos ou se inseria de forma precária no mercado de trabalho . Com o crescimento demográfico e a concentração econômica nas cidades, os promotores imobiliários e os proprietários fundiários encontram condições objetivas de potencializarem seus ganhos, a própria produção imobiliária passa a ser um ramo privilegiado de investimentos do capital. 

Nesse contexto, de ampliação do uso econômico da cidade, intensifica o processo de segregação espacial e forma-se “[...] duas cidades. Uma de opulência, bem-estar e prazer, e outra de pobreza e desesperança. [...]” (CORRÊA, 2005, p. 177). A lógica como se deu a urbanização no Brasil foi e é excludente e desigual, e a segregação espacial não é a única expressão concreta. A luta diária da população usuária do transporte público, os freqüentes congestionamentos, a dificuldade de se locomover na cidade de bicicleta ou mesmo a pé, o aumento do comércio informal (incluindo o trafico de drogas) são outros exemplos concretos da urbanização brasileira.

Como pano de fundo dos conflitos que são travados no espaço urbano, está o embate entre dois modelos de cidades: a cidade como negócio X a cidade como direito. Na primeira, a cidade é entendida, antes de mais nada, como forma privilegiada de obtenção de ganhos privados. Na segunda, a cidade é entendida como obra humana e coletiva e, por isso, deve servir prioritariamente aos interesses da coletividade, a cidade é vista como direito de todos e todas.

Referências Bibliográficas:

CARLOS, Ana Fani A. A Cidade. 6ª Edição. São Paulo: Editora Contexto, 2001.
CORRÊA, Roberto Lobato. O espaço urbano. São Paulo: Editora Ática S.A., 1989. ¬
______. Trajetórias geográficas. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

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